cordas tensionadas
Há algumas razões para as minhas quedas de avião, eu me provoco por cima de festa e salões de belezas. É tudo um desastre, ninguém entra e ninguém sai, é uma caverna dentro de outra caverna. Folheio revistas de moda no consultório do dentista. Sabe se ainda se telefona para as lojas e encomendar o que saiu na Cláudia? Hoje vi caixas empilhadas na portaria do prédio, no entanto vejo cada vez menos carteiros, agora é entregador, não é? Entregar o quê especificamente? Rasgo o olho a fim de decifrar as etiquetas cortantes, e errante persigo minha maldição. Os tempos mudaram e apesar de não estar sempre acompanhado, tenho uma vira-lata ao meu lado que me traz para o sigo. Olho-me no espelho, abro a boca como um animal selvagem, observo-me os dentes grandes e caninos. E os escovo com a boca bem aberta com a mesma rispidez que eu sei que a vida é bela, e revelo com orgulho a arcada robusta como de um cão alimentado de carne crua, minha Luiza. Apesar de ter mamado nos seios de minha mãe até aos três anos de idade, eu nunca a quis para mim. Será que Luiza quis ir para a cama enquanto mamava nos seios da madre-cão? E reparo nos meus dentes que são grandes, enormes, hiperbolicamente superlativos. Escovo com afinco os molares, como um gemólogo a lapidar uma madrepérola, e lapidava os dentes como se estivesse se preparando para beijar a boca de um deus, caso eu o visse a cara.
Mas não quero te parecer covarde, os primatas exibem os dentes como sinal de sociabilidade e submissão, mas minha intenção talvez não seja tão amistosa e eu não queira reduzir essa tensão que eu vou criando. Assim mesmo. indo, no gerúndio. É que as cordas do meu violino, tão pequeno e frágil estão sempre tensionadas e prestes a arrebentar. Eu levanto as cristas mas no fundo aceito as mudanças em pura cascata, em outras vidas fui um na multidão do sermão da montanha, e dou o outro lado do cara ao tapa porque afinal, não resistais ao mal; mas, se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a outra, não é assim? Humildade é atemporal, mas que culpa há no desejo? Às vezes eu quero e construo um desejo só meu, e eu o amo tanto que quero me fundir a este inferno que também é só meu. E torno-me a questionar, o que eu quero eu quero mesmo?
Um eterno quaerere, preciso de férias desta turbidez da querência. Até querer parar de querer é um querer: pedido, anseio. Persigo um vestígio do que eu já fui. Ontem mesmo chorei ouvindo o concerto das quatro estações, o rádio estava sintonizado na estação de músicas clássicas, e pude passear pelas cordas de Vivaldi e suas quatro estações sintetizadas no som. Garanto que foi um acaso, há tempo não era arrebatado. Como te sintetizaria a maneira que sou afetado? Pude sentir e chorar as mudanças sazonais através daquelas cordas, que devem estar menos tensionada ou ser mais longa e cortante para que se produza um som agudo como o inverno. Quanto menor tensão, maior vibração. E caso uma corda estiver tão tensionada a ponto de não vibrar adequadamente, pode haver problemas com a produção do som. Então meu choro sai desafinado, rasgando as orelhas dos que correm para resgatar o amor do asfalto quente.
A cobra tem época de mudar de pele, é na primavera ou no verão. A primavera é melodia que evoca a flor e o os pássaros agitados pelo sexo. O verão tem sol bronzeante e impetuoso, e com as intensas tempestades e o calor sufocante, tenciona-se no concerto para violino o esplendor das cordas agudas, escuta meus ais. O outono em si, nunca me encantou, é nele que as cobras deveriam trocar de pele, seria mais bonito, não é assim com as folhas das árvores? Mas outono também é colheita porque o grande inverno é o porvir, o enclausuramento dos dias de frio e escuridão, beber da água áspera, sem o sol massacrante para evidenciar o óbvio. O outono não causa dor, só melancolias. Inverno é um assopro exageradamente frio que me açoita as maçãs do rosto. Detesto inverno, adoro música. Busco nos discos uma música que um dia já fez sentido. E é nos instantes junto ao rádio que retorno aos momentos que vivi. Il cimento dell’armonia e dell’inventione. Eu só causo prejuízo senão a mim mesmo, e tem sempre um lugar onde eu ainda não estou.