desespero despedaço

leandro antony
6 min readJun 8, 2024

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Costuro um silêncio tardio num final de tarde, a rogar timidamente uma prece endereçada a um deus qualquer, algum deus que me ouça sem a culpa do pecado original. Algum que me finque a espada do estado de graça, – meu destino final. Minha prece é para que meu lugar no mundo se estilhace, e eu me refaça dos pedaços que eu mesmo me diluo diariamente no caminho de volta pra casa. O que há no outro que desperta em mim o incessante desconhecido desejo de ser? Por que na minha vida há sempre um deus para me apontar o caminho? Quais as partes de mim que forma o que chamo de eu? Na vida há sempre alguém indo, e eu, que permaneço sendo, porque minhas miudezas, no fim tornam-se palavras que costuro em frases, e descansam em tinta vermelha e seca sobre as telas inacabadas no fim do corredor. Meu prazer está em nunca findar, porque tenho medo do fim. É que em quanto mais pedaços me divido, mais me torno capaz de amar, porque ser um exige a força de um operário em construção, e eu sozinho não construo nada: preciso de muitos eus dentro de mim mesmo. E cada eu meu ama. Ama massivamente o que não se tem, porque o fato de ter o esvaziaria da substância de sentido. Só posso ser não sendo, e existo à medida que escapo dos vocábulos que limitam minha existência. Minha? Quem seria capaz senão eu de morrer no meu lugar?

Nunca tive filosofia, nunca recebi um telefonema às três horas da madrugada em desalento. Nunca conheci quem dominasse a palavra como um matador de touros, sendo o touro os próprios pensamentos. Os que me rodeiam têm sido exímios executores em tudo que se propõem, e eu; eu que continuo a escrever sobre as dores do mundo; eu que insisto na existência de um eu; e por insistir já atinjo o desacerto em meio-dia. Eu que só ando à falhar, e por falhar orgulho-me de certa maestria – a do erro –, porque errar exige um domínio na arte do equívoco. E eu sou um artista. Eu que continuo escrevendo em primeira pessoa do singular, por não enxergar além do próprio umbigo, eu que vivo no eterno gerúndio em que fui criado, indo e voltando de um lugar que ainda não foi criado.

Há sempre um findar do dia para que eu torne-me sempre um eu menos eu, e me amanse ante ao negrume espesso das noites de junho, e observo paulatinamente o precoce escurecer durante o caminho de volta para casa, e a respirar lentamente a fumaça desgraçada que sopra dos automóveis, fito de longe a vida se esvanecendo pouco a pouco, mais e mais, sempre e nunca, num ritmo quase secreto de uma cicuta intravenosa. Quando dou por mim estou sem a máscara grudada à cara, e as luzes dos postes anunciam oficialmente a penitência noturna. Meu instante termina e começa como um suspiro de surpresa, e eu me surpreendo com tudo. Quando escrevo sobre o mundo não é porque eu o conheça, mas porque é o único meio de chegar mais próximo do seu núcleo selvagem. Nos dias de chuva, quando o sol põe-se a descansar e as nuvens cobrem de cinza a esfera celestial, perco-me errante na névoa do meu desassossego e escrevo frases carentes de sentido só para rabisca-las de sangue e verniz.

E fito os pássaros pela janela, a se protegerem das gotículas que os castigam. Será que os pássaros sabem que são pássaros? Pois caso eu não fosse este animal feroz e não pusesse medo ante aos meus semelhantes, convidaria todos esses mesmos animais para dentro da minha casa, e brindaríamos a evolução da espécie e o puro acaso de estar respirando no mundo. E riríamos, cada um da sua maneira, a sorte e o azar de estar vivo. Mas ando com dois pés e tenho a língua, única posse real nesta vida, e faço dela o meu meio de subsistência. Nasci de um acaso, de uma explosão, mas não me contento com meias verdades, me interessa a menor unidade linguística do significado. Minha explosão se deu quando bateram-me o traseiro quando saí do útero?

De pé sobre o bonde, penso na minha cama, e enquanto sinto o peso dos ossos dos joelhos esticados dentro do elétrico, te escrevo imaginando a dor do desprazer, e ao deitar-me nu a ser novamente a inexistência pulsante do nada. Desvelo-me humildemente como quem devora a palavra em suspiros, olho descaradamente os olhos insones e cansados dos trabalhadores, olhos de quem tem fome, e quem dera fosse de palavra. Minhas arfadas expressam um impossível de dizer, e meu desejo primário é de arrancar-me as vestes e a única soberania de si, e gritar estridentemente pela presença de deus. Mas deus existe porque ele nos falta.

Estar perto do outro é a minha única salvação de chegar à palavra, é meu suporte de vida e amparo das horas de solidão antes d’eu adormecer novamente deste pesadelo, e dentro da selvageria no fluxo em que me chegam essas palavras aceleradas, tateio o céu mais próximo do inferno. O que escrevo não está solto, está pregado à cara, à boca e aos dedos. Não finda e nem começa, porque marcar um começo já anunciaria um fim, como o começo do mundo e da linguagem, e o lento fim destes mesmos acasos, seja por abreviaturas de palavras ou de vidas, seja pela validade das coisas, seja por existir e por existir morrer. Este elétrico poderia bater na próxima esquina, e este texto que te bato agora procurando um fim, nunca seria concebido além dos meus pensamentos. Perderia-se na fumaça de um desastre não anunciado. E teria um outro tipo de fim.

Cada palavra tem um sentido em que ela é, mas há o além da palavra e o além do som. Ouvir é sentir, escrever é sintetizar. E como um remédio, eu preciso das palavras como substância sintética para te recriar artificialmente o meu indizível e eterniza-los em letras. Pareço-te confuso? É que agora estou endereçando tudo isto a ti, porque Deus não ouve minhas preces, e preciso formular cada minuto que estou mais próximo da parada de casa, e porque também Deus sou eu e você ao mesmo tempo. Meu silêncio tem uma cor, meus sentidos pulsam por todas as zonas do meu corpo, tíbia, peito, dedo, orelha. Reconheço-me humano e selvagem. Só tenho a palavra para domar minha natureza feroz, mas a palavra é só um conjunto de signos. Posso te dizer muito apenas com os olhos e com as mãos, inclusive o que te escrevo nasce a partir de um silêncio. E diferente de um parto humano, meu parto é etéreo e transcende as barreiras amnióticas: não há proteção no que te escrevo, é como estar de pé sobre o elétrico enquanto ele curva pela rua escura, e a bolsa que me protege do mundo abruptamente decide estourar. Isto é uma tentativa de alcançar a vida, como um primeiro choro: eu grito. Um grito puro e sem vergonha, porque ainda não estou à par da lei dos homens tampouco dos deuses.

Reconheço-me como mero acaso, tudo o que tenho não foi conquistado, não possuo nada além da língua, porque possuir é ter posse e direito sobre as coisas, mas também sou coisa, e se te escrevesse em inglês seria especificamente um It. Mas minha pátria é a minha língua, e defino absurdos com diferentes sinônimos da língua portuguesa para estabelecer uma ponte entre mim e um outro, no meu relicário carrego o corpo de Cristo, para que quando eu sinta fome, recorra a ele, e o devore. Estou faminto e por isso bato freneticamente a fim de ser ouvido em silêncio profundo de quem morre ao cruzar a esquina de casa. Ah, estou farto de tantos protocolos, de tantos mandamentos, de tantos documentos. Não fiz concessão para vir ao mundo, estou de passagem. E trabalho para que os dias se sucedam mais rapidamente, e para que deste modo, eu possa me aperceber somente no fim do dia, quando torno-me sempre, mais cedo ou mais tarde – o ser medíocre que fizeram de mim.

Não possuo grandes ambições, minha verdadeira meta é originalmente ir além-de, além do que simplesmente meus olhos enxergam e o meu nariz fareja, além do sentido que dão às coisas, meu além-de ainda não chegou e só alcanço em sonho. Todas as minhas tentativas de retornar ao passado são falhas. E desta vez banhado em louro e horizontalmente confortável, viro-me o corpo sobre a cama, para não morrer de morte morrida antes da próxima vida a ser vivida. Espero que amanhã Deus me ouça, e eu me refaça feito louça, dos pedaços que hoje me perdi.

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leandro antony

leio e escrevo pra não deixar de aprender o faz-de-conta