fronteiras de um delírio

leandro antony
8 min readMay 29, 2024

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É com jubilosa glória que grito eu, do alto da minha mesquinhez, a descoberta de um mundo. E hei de cantar aos quatro cantos da esfera celeste. Pois minha carne é vermelha cor do sangue que escorre da minha ferida, ferida de vida: ferida de quem nasce. E alimento-me da placenta do mundo, este sítio de incertezas em expansão. Suspenso no escuro do universo em forma de útero, sento-me novamente à mesa para te bater o interdito. O que não é visto, é sentido. E eu sinto pelos olhos, pela boca, pelo nariz e todos os sete buracos da minha cabeça.
Em forma de sonata, crio-te em palavras três movimentos que se relacionam com o ritmo do qual sucessivamente vou compondo a ti um absurdo completamente particular.

Acordo e é novamente dia, à procura do teu lado na cama, eu toco o infinito da palavra em busca de um murmúrio sufocado no travesseiro. É que na última noite, Morfeu guiou-me entre as imagens do meu sonho, e novamente sonhei com o teu rosto irrefletido de mim. O que faço com as cores que deixaste na minha boca ao despertar de ti? Ensonorentado à arrastar o corpo pelo lençol desforme e a luz: que timidamente começa a revelar-me a redenção da noite sem som.
A noite ensina a cair,
e levanto. Pois é novamente dia, a clarear o negrume espesso de um noite lamuriosa e sem lua. Ouço o canto dos pássaros com os ouvidos atentos e a boca sedenta de água, é de uma fonte turva e gélida que pela manhã, umedeço os lábios de desejo. Minha penitência é ser livre, deram-me um nome: não o escolhi. E é de um Eros que é feito meu estado de inanição, estou reluzentemente pálido e há uma certo melancolia em meus olhos, é quase inverno e o lume do mundo se apaga lentamente, como se o único fitar verdadeiro fosse de um deus fronte a mim, um deus diabólico que só pode ser captado no escuro dos negativos da câmera. Encaro o espelho, e fito-me com os olhos de uma criança, a fim de captar por curiosidade puramente infantil qualquer movimento das pupilas em busca de um fenômeno, de um deus, de um tu, de um eu menos eu mesmo. E observo-me com os dentes afiados prestes a devorar um futuro desconhecido. Pronuncio alguma palavras soltas só para sentir a fricção do ar sobre os molares. Meu desejo é decifrar a poesia em forma d’água, derrelição é a palavra, poesia é o anteparo de alguma euforia. O que deixo de dizer me escapa, e meu silêncio é uma maneira de mimetizar meu eterno dilúvio.
Mas todo esse cinza no céu machuca, e é por doer e estriçar o peito; que eu vocalizo um heu de heras. O que quereria me é interdito, e o que me resta é a fantasia.
E o som do tintilar das taças de cristal do corredor vazio; o silêncio da noite sem lua, a faca a agatanhar o prato, como um felino ante a um novelo, tenho pressa, e por isso arranho as palavras como quem devora uma carne sangrenta na crucificação de Cristo. E bebo do vinho derramado, corpo divino, à sujar os guardanapos manchados de um vermelho cor-de-vida,– de morte, porque nascer é morrer em outra vida, e morrer é um recomeço sombrio e reconfortante. É preciso devorar paulatinamente palavras em segredos sucessivos, para que de algum modo, nem sempre bem sucedido, descodificar uma imagem em forma de tinta preta nos poemas de guerra e nas pinturas de amor. Desagua em letras um cataclisma de um desejo de quem deseja o improvável: desejo de infinito. O infinito é uma fabulação capaz de ser ultrapassada? O que haveria depois do infinito? Dedilho com afinco cada aresta desta pele em estado de espera: Tua espera. E quando digo Tua é porque não posso dizer Meu. Perfuro a epiderme em busca de um átomo que ainda não tenha dito sim ao teu nome, pois tudo isso é um sim que nasceu a partir da negação, de quando eu disse não ao teu rosto e ao grito primário de uma palmada que sucede a primeira arfada de vida. Ainda estou envolto de placenta, e preciso comê-la para dar sentido ao absurdo. Em meio a átomos, pele, sangue, suor, lágrima, eu tento dar sentido ao desconexo. É dever meu descortinar em linguagem o que me é submerso, e eu trago à vida um novo eu a cada arfada.

Não fumo há poucas horas, e estaria mentindo se te batesse que estava sem fumar há alguns dias. Mas sim, estive carente de cigarro não faz muito tempo, é que às vezes nem a fumaça camufla o dardo que me atravessa às três da madrugada, e recorro ao café puro, sem leite e sem açúcar, pois através do amargo na língua, sinto novamente o novo, e lambo os lábios, mesmo que mortiferamente, provando o gosto azedo da vida à pulsar lentamente sobre meus dedos.

Já te contei sobre a fragilidade dos recém-nascidos? Os bebês, fatidicamente, podem morrer pela fontanela; a parte posterior ao crânio. E o fontículo ainda não ossificado, no mais descuidado esforço, aniquila em minutos o próprio minuto, o tempo materializado. Eu já fui bebê, e se fui é porque em pretérito perfeito permaneço vivo. Mas penso em como seriam os minutos manchados de sangue, se alguém me deixasse cair no chão. E o negrume espesso do sonho culpado de quem sonha e realiza, seria apenas uma sentença de vida. De quem carrega a dor da morte e o próprio morto. Torno-me mais animal ou mais humano quando também me imagino morto? Porque a morte como começo me enfeitiça, e eu preciso estar morrendo ou imaginando o meu fim, porque também a vida é finita como o açúcar de uma goma de mascar. E em algum momento há de amargar o outrora doce mastigar, e os dentes, — já impossíveis de roer qualquer substância, liquefaz a vida pela boca.

Acabaram-se os cigarros, são dez para as onze, e mesmo que eu me esforçasse para cruzar dois quarteirões em busca de alguma tabacaria, acabaria-me o prazer da falta. Porque minha vida como um jogo, se concentra no prazer de perder o possuído, e em posse do objeto do gozo, eu o descarto. Porque possuir me apavora, é do esforço que eu verdadeiramente gozo. Seria assim com a carteira de cigarro, e eu não a fumaria. Talvez não hoje, e nem agora. Porque pensei durante toda a vida, que precisasse de cigarros para te escrever, e no entanto te bato em ritmo violento, sem o turíbulo das minhas emoções.

O fim do jogo é sempre um início, é por isso que morro para nascer de novo, como um escorpião sitiado em círculo de fogo, eu perfuro-me em veneno mortífero, para assim escapar do perigo direcionado a mim, a fim de renascer em outra dimensão. Meu tintilar de vida é uma ária em oratório silencioso. E as teclas do piano vagam lentamente sobre meus dedos, pressionados como que, curiosamente aperta-se um botão de uma rosa. Compor o ritmo que leva uma vida é tão delicado quanto um fontículo de um bebê. Viver em incongruência opositora com a matéria que tomo por consciência é o combustível para o meu próprio fim, e percebo isso a partir de agora, enquanto trago as palavras em forma de um cigarro imaginário. E depois, antes da zero hora, um vento me assopra, e repito a canção que por vezes esqueço os verdadeiros acordes, e continuo. porque continuar é tentar, e eu tento porque já fui bebê. E minha moleira foi ossificada, possuo traumas e linguagem. Por isso consigo te descrever que durante o verão, as folhas dançam uma valsa úmida e quente. E os esgalhos são como as pernas, os braços e os ossos, que de tão quebrável e delicado, podem-se desfazer no primeiro arremesso.
Quando criança subia em árvores e arrancavam-lhe os ramos, sempre houve em mim um certo prazer em destruir. É que com o tempo passei a destruir a minha natureza e não a do mundo, mesmo que eu seja do mundo, sou à parte deste acaso. Quando escrevo sobre as coisas, não é porque eu as conheça, mas porque as observa. E minha função é destruir e criar, artificialmente o que já foi natural e fácil. Sim, nada é fácil, sempre houve um tempo entre o plantio e a colheita, um silêncio entre um acorde maior dentro de um cântico perfeitamente progressivo. Silêncio.

Meu absurdo é descoberto à medida que deixo-me ser atravessado por ele, e chega ser novamente absurdo o extraordinário das coisas. Telefonam-me pontualmente às seis da tarde e hoje, quando decididamente, sentei-me para te bater o que não digo, o telefone não tocou às seis da tarde; ele não tocou. Conhecer a natureza dos outros é o como eu descubro os meus próprios limites. E essa banalidade do imprevisível me fascina novamente, porque torno lentamente a perceber que o único domínio que tenho sobre mim é através das palavras. As que vocalizo ou as que pinto em forma de letra. Tudo isso me ultrapassa, e aos poucos entendo que não posso nada mais do que contemplar toda essa valsa do tempo sobre os anos. O tempo é imperativo do tornar-se, é uma espécie de gerúndio que pode findar-se num sopro acidental, mas enquanto ele continua ventando sobre as maçãs do rosto, torno-me mais a cada dia que me sucede. Para melhor ou para pior, frequento-me a cada dia, porque mesmo não sendo senhor da minha morada, vivo por ela e para ela. O que desejo te explicitar é que estou descobrindo um novo absurdo, um novo artificialmente natural. Aos poucos, novamente torno a trotar com as palavras, e como um garanhão,– a fim de cortejar uma fêmea para reprodução – batem energicamente os cascos sobre o chão; Eu bato meus dedos com força no solo da vida, em busca desta tal liberdade.

Pensei que estar sozinho era a inanição do leite materno, mas minha derrelição é fruto das minhas áridas entressafras, da qual extraio da terra seca e noturnamente dura; o meu verdadeiro núcleo esvaziado de cor. E caem sobre minha pobre cabeça os figos ainda verdes, e durante a noite à invocar espíritos à invocar cabeças à invocar frases: eu evoco na memória das primeiras palavras o interdito das intenções. Hei de ser breve ante ao tempo que ultrapassa e solidifica os segundos que marcam o intervalo do meu último suspiro.

Da razão, agarra-se ouro no tornozelo e pastas de couro animal, papéis, números.
Da razão, o trabalho, o poder.

Do amor, rubro cintilante e doçura; a descoberta.
Do amor, a violência das paixões e as texturas de tinta.
Do amor, a valsa interminável da alma.

Da razão, a aquiescência da finitude e o libertar de grades.
Do amor constrói-se a razão, e a descoberta de um novo acorde, acrescenta venosamente uma nota na grande ária que troto em noite de lua cheia. À procura da fonte d’água que mate minha sede e encharca-me os pelos.

Essa tal liberdade de jogar fora a goma de mascar quando chega ao fim o doce e o rosado do pequeno e infinito chiclete. A liberdade do corte final de uma faca e a última gota de sangue, do suspiro horripilante de quem acorda de um pesadelo e volta a dormir.
O que te escrevo sempre retorna, porque como as pestanas dos olhos que seguem o movimento de voo de um pássaro, eu nunca me movo de ti. Estou preso na matéria que aos poucos tomo consciência. O que te escrevo não tem fim porque é uma eterna descoberta.

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leandro antony

leio e escrevo pra não deixar de aprender o faz-de-conta