náusea

leandro antony
6 min readNov 24, 2023

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O que poderia distanciar-me do átimo de som que vocalizei quando nasci do grito de jubilo que te bato em palavras? Até que paragem exata poderia eu, homem com olhos de cão e ouvidos de tuberculoso; salvar-se a si mesmo, num sítio tão incerto como o signo, que evola no ar como as cinzas do cigarro, que mais me parece servir de turíbulo sacro para o ritual crístico de sangrar o próprio segredo vermelho em letras latentes.

O que irei te descrever não é inédito, não é bom nem ruim. Sua essência é demasiadamente humana e cirúrgica. É preciso rasgar a pele que acortina o corpo, sim, um corpo que encarece de sentidos.

Ser apenas um coração batendo no mundo à espera do próximo suspiro. De quê? de vida. e aqui diante de todo esse grande mar que me aprumo num mastro da salvação do naufrágio inerente, eu apresento essa imensidão de perguntas antes de adormecer, e acordar, e dormir, e despertar. É uma eterna vigília do pensamento ansioso de definir a coisa, e é através disto que te entrego e tu aceitas, é o que tentarei te trazer para o momento presente, só que não aqui, e em lugar nenhum, afinal, o que é o presente e estar sendo? O que pensei já passou, e eu continuo a tentar captar a essência do que me atravessara. O que te escrevo já deixa de ser à medida que exista outro em contraste: eu só posso lhe descrever sobre o dia ao cair da tarde, e as madrugas em insônia de abraço à juras de cura; essas poderiam ser ditas na alvorada com a cortesia de Chopin, e eu não seria somente noturno, seria o desejo claro sem breu ou significante iluminante: apenas seria o claro instante que pulsa e desaparece. Só posso amar plenamente se aceitar o ódio que pulsa violentamente no meu peito. E existo por isso, por que deixo de existir, e por isso há certo grau de existência nesta não existência plena da coisa.

Quando torno a te escrever, sinto-me próximo novamente da náusea, e transito no sítio das minhas próprias palavras — é esta a minha seara.

preciso te escrever até ao infinito, isto não tem fim.

E ao questionar a existência como puro frenesi da curiosidade; não me assusto: deixo-me ir. É que às vezes preciso me distanciar do todo impulso básico para que eu sinta finalmente o grito primário. E apesar de não ver tudo, eu vejo muito. E ver é um dom, assim como o ouvir, o comer e o dormir. O que escrevo tem gosto metálico de sangue e escuta-se como um ruído branco, como desses que se ouve no útero antes de nascer. Em sonho, te imagino altivo e descompassado como um jazz de quinta-feira santa. O que te escrevo ainda está nascendo e parece não findar nunca; pulsa.

estou gerando um ser vestido de linguagem, do qual eu alimente somente de sopa de letrinhas. De que outro tom poderia te pintar o poema ideal? A forma da coisa está no som que há no vento e no óleo que dilui as tintas. A minha náusea tem cheiro de esgoto e desfila despido de pretensões. O meu olhar é vestígio de um sopro no escuro de quem ama, é vertiginoso e sinestésico. Eu amo, amo muito a ponto de doer o peito. E por isso me castigo em melancolia tanta, amar em demasia revela-me os caminhos do sofrimento da impermanência. Se nada existe e nada fica, por que o que continuo a te descrever não termina nunca? porque minha unidade está em amar, e somente a partir deste ato de doar-se e perder-se é que posso finalmente pensar em mim, e te escrever estes rabiscos diluído em óleo e leis.

Eu precisaria trotar na escuridão noturna de uma primavera úmida e azul-marinho, para alongar-me do lembrar de ti em cada signo que me passa a mente, e na mesma velocidade violenta do vento sobre minhas crinas, eu bateria com veemência a máquina para que assim, enquanto eu continue a perseguir a coisa, seria eternamente enauseado pelas palavras e pelos cigarros e pelos vícios. Para escrever é necessário desprender-se de si, e desprender de si é amar.

amar o quê?

a vida.

E não só me bastariam somente as influências planetárias que me orbitam, cigarros e mate: eu preciso de vida, de um deus, de uma planta e uma pedra. E infelizmente não posso ter uma vida para cuidar, a não ser a minha, e do meu cão, porque apesar de me considerar um, não sou um. Compartilho minha casa com um original, que emite latidos em vez de palavras ferinas como os humanos, há também o lírio-da-paz que me faz companhia siderante em dia quente.

Decorar cálculos e fórmulas matemáticas é para desconhecedores da verdadeira natureza. Meu desejo de conhecimento é reconhecer todos os tons de verde que existe na terra. E mesmo que numa mata coberta de nuvem desértica eu me perca de um nome, meu corpo além-da-mente insistiria em durar a vida inteira para perseguir um amanhecer de céu rajado em laranja primaveril.

E neste alvorecer, à procura do sono de arquitetura ideal, talvez eu te bata algumas palavras verdadeiras, sem endereço, cor ou pretensões de traços prévios, para que assim, logo mais eu possa correr pela mata fechada úmida de ar fresco que me serve como jornal de serviço. E os trinta metros que me doem o pescoço, a observar e notificar cada folha e ar comprimido dos Jatobás nas Paineiras que me enchem o peito. Catalogo tudo que me prende a visão, e não há relógio batendo o ponto das horas liquidificantes onde tudo é ornamental, daqui do alto o sol me ilumina fragmentariamente, não preciso desvelar-me inteiro. E o som dos pássaros junto ao eflúvio de pedra molhada: lantejoula que adorna a pura e bruta rocha ancestral, me emudece.

Unha-de-gato, Jatobá; erguem-se em tronco entrelaçado como os instante vividos, a ecoar um fonema perdido pelo vento entre as folhas e integrado a mim. As unhas-de-gato que me crescem no lugar das unhas de cão, arranham delicadamente as lianas do passar das horas. Meu desejo? harmonia de vida.

O que te escrevo talvez não termine nunca, é como um disco que preciso mudar e ouvir novamente, desta vez menos altivo e mais humilde para iniciar o canto primário de quando nasci. E por isso preciso te pausar em dado instante, como às vezes preciso estender as roupas no varal da área de serviço num dia de domingo. E estender a canga molhada num movimento gravitacional de um simples secador de tecidos ao chegar da praia.

Preciso chegar ao momento exato da síntese da palavra. E por mais que te pareça perdido, é que não há lógica no absurdo. Eu poderia gritar, mas como te gritaria uma lapso? Seria inútil evitar o desprazer porque meu jubilo está em deixar a dor invadir-me em sua excitação, tudo é magia, e ela também habita os números e fórmulas alquímicas. O domingo e a quinta-feira são sempre um convite a um conjuro que me solidifica em pedra de gelo inderretível. Não há o que te bater senão a loucura do que me pinga pelos dedos, e o som artificial de uma rádio fm anunciando a hora que embala em ar fresco a mesma coisa que permeia a minha existência. Resta-me amar a brisa do cair do dia abrasado, e despir-me do calor através da água que percorre a pele do meu corpo quente, e umedece o tecido da alma: relembro que sou bicho. É de água que eu preciso, e a bebo à procura da tal coisa, é com água que acalmo a minha náusea de homem-bicho. E não preciso pensar em um signo ideal para te definir a sede: apenas a tenho.

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leandro antony

leio e escrevo pra não deixar de aprender o faz-de-conta