previsão do tempo

leandro antony
9 min readDec 13, 2023

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Era mais um dia quente daqueles em que os automóveis esquentavam o asfalto misturado ao piche novo e abafado do progresso das obras do bairro, que crescia cada vez mais verticalmente. O buscar da vida neste fatídico dia na vida de Lygia, arder-lhe-ia a pele rubra e alva no deserto negro de areia fina, a qual arrastaria-lhe os pés cansados e encrostados de tempo. As asas dos anjo do mundo, costumavam carregá-la para um caminho velho, e todo fim seria ineditamente bom já que a morte é a última instância, e o assobio do anjo mortífero é como um beijo soprado na maçã do rosto. A morte não é nada além de um início. Queria mesmo era ser beijada no asfalto quente das ruas de dentro nas noites de primavera da Tijuca.

Mas era dia, e estava à procura de um lugar que aniquilasse sua sede, sede de calor e de alma. Precisava sentir o corpo resfriar, e a alma a reunir os retalhos de cartas que escrevia para si mesma. Ainda iria escrever um livro — pensava; um lugar que ainda está para existir. Um sítio profundamente térmico e sem fulminação biológica do suor que vazava de seus poros de mulher sem colágeno. Precisava beber algo, mas não havia nenhum lugar decente para sua nobreza da mulher balzaquiana. Queria refrigerar-se. Excedia-se em sua euforia quente e úmida, havia a habilidade de externalizar todas as vísceras do corpo, poderia ser ter sido atriz ou dançarina. Mas era assim, deste jeito cru e sem pompas, que se sentia mais próximo do coração de Cristo, e estava quente, por isso usava como roupa um vestido de linho branco que mal cobria-lhe os joelhos, estava transparente como a água do mar sem ressaca.

E ao caminho do supermercado, hábito que dava-lhe sentido à vida com os filhos agora já crescidos - e ao descer as escadas, e ouvir os sussurros da manhã sem coragem que os cordiais vizinhos transitam entre dois lados, e o sacramental dever de cumprimentá-los e perguntar dos filhos que brincara com os seus. Ir à rua era sua espera de milagre, de um acontecimento, de um reencontro marcado com um parente perdido que nunca foi família, era de uma criança ou animal, ou uma bandeja de figos frescos. Era só, e apesar de solitária não era triste, apenas estava cansada de agora descobrir-lhe a náusea. E na descida da escadaria do segundo andar, pôde observar o zelador entre os degraus do primeiro lance de escadas do térreo, a tutelar pela ordem de um condomínio vertical: não havia som de pássaros, mas havia cheiro de eucalipto artificialmente natural; estava tranquila. Plasticamente natural, aquilo estranhamente a agradava o olfato e os ouvidos, e descia o primeiro andar do pátio com a altivez de uma flor, desejando bom-dia ao zelador do prédio, enquanto ele encerava o mármores dos degraus da escuridão, agradecendo-lhe-a e a desejando o mesmo.

E ao sair do prédio com a fachada em obras, o que outrora era cinza passará a ser bege, um marrom claro e positivo, cor do progresso. E ao caminhar, passou por algumas quitandas de rua mas não havia nada alí que a agradasse, logo tomou a decisão de ir de rumo ao mais plástico da comida, e foi em direção ao supemercado e suas embalagens perfeitas. E enquanto escolhia os espinafres, pois precisava deles para colorir de esperança a comida enlatada que deglutia todo jantar; mas não! desta vez estava decidida em pelo menos uma vez por semana bater espinafre com creme de leite no liquidificador e comer com a massa mais fina que encontrasse; cappelini ou cabelinho, independente de ser de anjo ou do diabo, italiano ou brasileiro. Sua missão tornou-se agora alimentar-se do solo, da folha, da manga espada suculenta que quando comida: esfiapa-se e gruda nos dentes, como a poesia e o beijo de dois enamorados.

Nessa procura do verde mais reluzente e da massa mais fina, conseguia observar o verde mais de perto das folhas que preenchia a gôndola do supermercado, e descobrira agora que os verdes têm cheiros, até os mais artificiais possuem cheiro — como o eucalipto que tem odor de limpeza. O verde comestível tem cheiro de vida, de pulsão. E o espinafre tem cheiro de de clorofila, de magnésio. Manga tem cheiro de floresta. E ao digressar sobre a sinestesia da existência e a linguagem, distraidamente, encantou-se a passar por uma enorme alcachofra, e pensou:

— seu coração deve ser comido?

E na saída do supermercado, a segurar as sacolas, teve que subitamente de voltar e comprar além de espinafres que já carregava: a alcachofra. Seu interesse não estava nas folhas, na base ou no talo. Seria o coração da alcachofra, o desvelador da selvageria oculta do eco de sua própria essência oculta que ela esconfia de si mesma. Seria capaz de devorar o próprio peito em forma de comida, e mergulhar no abismo palatável do próprio ser? Lúcida, compreenderia que o coração, esse órgão indômito, pulsa como um tambor frenético de rituais xamânicos, ecoando angústias no peito arfado com o mesmo grito velho de quem latiu a vida inteira. A faca na mão tornou-se um bisturi da autenticidade, e ela, uma cirurgiã de si mesma, chegou em casa prestes a cortar o coração da alcachofra, simulando uma dissecção intrínseca. Entre os lábios úmidos e famintos, simulava a antropofagia do próprio eu ao devorar a si mesma, e enquanto o sangue pálido da alcachofra tingia seus sentidos de mulher incalculável, sentia-se cada vez menos dona de sua morada, era Lygia. Sim, a cada mordida fazia um pacto, uma fusão de seu eu-linguagem com seu eu-vegetal, era uma dança canibal e diabólica de sabores e descobertas que lhe aguava a boca de desejo: queria mais. E comia a si mesma e sangrava branco, comer a alcachofra tornou-se um espelho de si mesma, a refletir a coragem de saborear a alteridade do próprio ser, estava empenhada em ser canibal caso fosse preciso, e assim o fez. Comeu-lhe o coração da alcachofra como se fosse o próprio, não chorou como na primeira vez que provou da hóstia, mas não estava mais interessada em cores ou palavras, estava decidida em esculpir a palavra ideal pintada em sangue branco e fresco. Queria destrinchar a alcachofra como se destrincha uma história familiar. Aliás, não tinha família. Era sozinha e desde pequena aprendeu a sobreviver com o pouco, e o pouco de vida nobre que lhe restava, gastava dormindo ou escrevendo, e foi assim que conseguiu uns trocados para continuar a comprar cigarros e coca-cola e a escrever.

Sim, agora havia dissecado o coração de um vegetal, e sem remorsos, pensou em abrir o próprio. Estava cansada de não saber o interior de si, queria sentir mais do que o sangue, queria tocar as artérias que levam até ao coração. Ao pegar a alcachofra das sacolas, a colocou na pia. Ela a olhou por um momento, pensando no que fazer, lavou mas não sabia mais ou menos como cozinhar a alcachofra. Então pegou uma faca e começou a cortá-la, a retirar as folhas externas e as pétalas, até chegar ao coração. Ela olhou para o coração da alcachofra como se olha um diamante. Era branco e suculento. Esquentou a água e pôs se a observar o movimento certo da ebulição. Ela sentiu um arrepio na espinha, e então, novamente a faca, cortou-lhe uma fatia do coração: levou à boca e boca e mordeu. O sabor era estranho, mas delicioso. Ela fechou os olhos e saboreou a ambivalência do amargo e o doce de um coração, é como é na vida. E a cada mordida se sentia viva e morta ao mesmo tempo, mais viva e morta do que em muito tempo. Mas, naquele momento ela sentiu uma esperança que não sentia há muito. Ela sentiu que, talvez, sua vida pudesse mudar repentinamente. E como a previsão do tempo, estava disposta a acreditar no que era impossível de ser autenticado, era um chute, uma previsão inferida em alguma gaveta do pensamento. Não se controla a natureza das coisas, e nem a coisa. Estava prestes a deixar de ser o que era, para tornar-se o que jamais fora. O natural de sua vida tornara-se a evocar espíritos

a evocar santos
e a evocar espíritos
e a evocar a si mesma.
e a não encontrar ninguém.

Ao acordar e ao escovar os dentes, estava apagada de si. Mas um dia sequer havia tido uma face verdadeiramente sua? Sua exímia habilidade em lidar com o passado a retirava do presente, e por isso, precisava remoer o passado como uma pílula amarga sem água descendo o esôfago apertado e seco, e esta mesma pílula que a levava para o futuro, a fazia roer as unhas e consultar a cartomante de Vila Isabel que costumava ir em momentos de desespero. Queria prever o próprio tempo, precisava assistir ao futuro simbolizado em cartas de tarot, como uma previsão, um chute, um acerto. Quereria tocar o plasma, a matéria, o Deus, o oculto. E apesar de sua pose de orquídea, uma dessas onipotentes; alta e que ninguém da roda decifra, como uma esfinge grafada em hieróglifos, um enigma, um signo, uma fórmula. Era a própria matemática, mas não sabia o teorema da própria vida. Alguém sabe a própria dedução lógica? Precisava de uma conselheira, de uma médium, de um intermediário entre o coberto e o visível.

Era epífita pois crescia sobre outra coisa e não sobre ela mesma, e usava o mundo como suporte físico, não como fonte de alimento. Alimentava-se do plasma da chuva e das cartas embaralhadas. No seu imenso jardim, era uma orquídea que se destacava por uma mulher de estatura imponente, arquitetonicamente planejada, deslumbrante em sua altivez. Como uma página virada, suas pétalas seriam como versos delicados que dançam como a brisa noturna da rua do Matoso. Sensível ao toque do sol, ela se recolheria com a timidez de quem se entrega ao calor íntimo da primavera úmida. Suas raízes, como mãos calejadas, explorariam o substrato em busca de conexão de vida através da morte, a revelar uma força motriz que ressoaria como a poesia da natureza das coisas: tudo finda.

E ao chegar na cartomante, deparou-se com cheiro de incenso de sálvia, o que a enojava e inebriava, pois trabalhando mentalmente tantas perguntas, perdia-se dentro da linguagem do pensamento. Estava oca? Era isso que deveria perguntar ao baralho, ou a cartomante deveria adivinhar-lhe que comeu um coração como se fosse o seu? Não sabia mais o que perguntar, sequer havia pensado em alguma coisa. Foi tomada de desassossego e quando deparou-se: estava alí, no calor do subúrbio envolta de velas e imagens sacras. Tudo o que não planejara antes de comer a si mesma. Talvez o asfalto que esquentava a rua sem árvores, a fez repensar no que esperava de si. O inesperado é o mais sincero dos acontecimentos, simplesmente existem porque devem existir, ou cria-se como a criação do mundo em uma explosão solitária e escura. Sim, era na oculta neblina de ser que precisava tornar-se o que seu destino a predestinava ser: mulher. E para isso, desprendia-se de roupas e teorias. Andava nua pelo mundo sensível e o mundo das ideais. Na penumbra noturna, entre sombras e raios prateados, como os felinos: dançava um balé místico, a transitar entre dois reinos esboçados com tinta de lula em cor de preto metálico. E sob o manto estelar, suas patas peludas e silenciosas traçavam linhas invisíveis, costurando o tecido que separa o tangível do etéreo.

Seriam esses os artífices da transição dos navegadores entre o efêmero e o eterno?

Suas íris de lamparinas sábias, iluminavam o caminho do brilho das ideias puras, e enquanto seus movimentos graciosos deslizariam sobre a superfície deste mundo e do além. Como filósofos do crepúsculo a decifrar enigmas que escapam aos olhos humanos. Ela era o gato, símbolo da independência e mistério, a erguer-se sobre as patas traseiras, como se buscasse alcançar as estrelas que piscam acima. Seus bigodes, antenas do conhecimento, sondariam o éter, captaria osecos das formas ideais sussurradas ao cosmos. Em suas peripécias noturnas, há uma comunhão com o divino, uma dança entre o real e o ideal. No silêncio das ruas desertas, os felinos esfregam-se contra os pilares da existência, marcando com suas essências a fronteira entre a caverna das sombras e o vasto campo luminoso das ideias. E em prece de quem fala como evoca-se espíritos, e sussurrou a si mesma: cada passo é uma travessia, cada miado um mantra que ressoa nos corredores do metafísico, criaturas aladas da escuridão, ensinai-me o segredo de transitar entre os dois mundos, de decifrar o código da existência além dos signos. Vossas caudas, estandartes de mistério, flutuam como bandeiras em uma procissão celestial, e eu continuo a correr sem cansar-me. Nas vossas pupilas, vislumbra-se o reflexo da verdade eterna, uma lente que focaliza o transcendental, e eu não preciso de lentes ou óculos. Ensinai-me, meu pai, a transitar como os felinos, e a prever o futuro como as cartomantes.

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leandro antony

leio e escrevo pra não deixar de aprender o faz-de-conta