religião

leandro antony
4 min readJul 9, 2024

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Busco nos discos uma música que um dia já fez sentido. E é nos instantes junto ao rádio que retorno aos momentos que vivi. Danço à procura do acorde perfeito e maior, mas esse retorno é sempre desatento e sem a mesma fragrância da mocidade, observo-a distante, como quem tenta tatear com a mão um punhado de terra petrificada. As memórias se petrificam como troféus, de vitória ou de fracasso: troféus. Faço das palavras um ouro bruto oculto na rocha sedimentada. Minha alquimia está em transformar o sagrado profanando-o, porque se Deus nos criou em sua semelhança, e assim como ele duvidou de Abraão ante a Isaque, há mim também há o direito da dúvida. E eu duvido. Enquanto o cintilar da alvorada anuncia nas frestas da janela acortinada, um pequeno pedaço desse deus insone que roga por nós. Porque as estrelas são vistas em noites de claro breu, e o chão se torna uma tela em branco para a trama que compõe o corpo celeste. Como posso ter certeza de Deus se não tenho certeza de mim?

Nasce-se no solo o que se leva à boca e essas palavras espaçadas é substrato do que ainda está por vir. Um delito de delírio que calculo com certa margem de erro.

Nunca se sabe o que está por vir, ontem mesmo estava um calor escaldante, e hoje anuviou-se em cinza o outrora céu azul. Mas não é somente isso que não se sabe, eu não sei a direção que vai a minha vida e essa espuma que reveste a minha pele. A iminência da impermanência é a força motriz da minha sensibilidade, pois se eu não fitasse o outono com afinco, não teria consciência de que tudo que inicia tende-se a findar. E se sinto é porque necessariamente esta é minha missão, tomada heroicamente como uma salvação. Se não planto palavras, não me mantenho vivo, e o vinho, a embriaguez de proferir frases apaixonadas, são apenas resultados de um constante plantio de sensações que meu corpo produz, meus lábio vocalizam e os meus dedos mancham em letras sobre esta máquina. Mas minha paixão vem de pathos, e piedosamente eu toco na minha melancolia sangrenta e pungente. Quisera eu escrever sobre o Eros que há nas coisas, e a elevação que há enquanto ama-se aquilo que se deseja, mas a morte é a única coisa minha a ser vivida. O desejo primário sempre margeia a aniquilação. E eu atraso a sua chegada em sinais que descodifico à medida que me dedico ao mais vil do cotidiano, porque o corriqueiro e o usual são os números que me levam ao cálculo do que possa estar por vir. A tristeza devora os corações mais fartos de vida, e feliz é o triste, por ser aquele que sente, porque sentir é a sentença do corpo e da mente, e recusar a cisão do corpo e da mente é tão elevado quanto um jazz descompassado. Abençoado seja o ser que ainda observa o mundo além do macro. Como as palavras, o mundo é grande por conta das bactérias, dos pormenores e dos sinônimos para as causas e suas consequência.

Quando caminho no mês de junho, a observar as folhas estiradas sobre o chão, não as tenho como a pele que descama depois de um longo dia de sol do verão de fevereiro, mas como folha derrubada pelo tempo, – simplesmente isso. Porque para nascer é preciso morrer, para a semente crescer é preciso rega-lá. E eu sei que a chuva que lava é a mesma que pode inundar toda uma plantação. E o sol, o sol que esquenta também me arde a pele e produz queimadas no alto agreste das províncias. E eu contemplo tudo isso que me é ultrapassado por esta coisa, por essa natureza, pois sendo eu uma extensão deste isto, eu mesmo um dia serei a folha caída e ultrapassada pelo indizível. Fito as farfalhas tingidas em ouro e este é meu religare, é o estado puro das coisas do jeito em que elas são, que me conecta ao mais profundo de mim. Porque olhar uma borboleta é saber que um dia foi lagarta e o casulo, e tal como a placenta: come-se. O alimento está dentro, e para não morrer de inanição preciso plantar o que irei comer. E é por meio das palavras que preencho a alma da barriga. Revirar o dicionário é como ir à feira, e nem sempre encontro as palavras mais frescas para te bater, agora escuta-me: ninguém poderá morrer minha morte morrida, pois há sempre um correr d’água entre os meus inícios, e preciso ser úmido com o que te dedico. Ninguém além de mim poderá deitar-se na caixa de peroba que cobrirá meu corpo. Meu fim desemboca em alguma chegada desconhecida e o findar da viagem é o início de outra, mas é durante a entressafra que reavive-se tudo o que foi ceifado. Quando escrevo sobre a natureza das coisas não é porque as conheça, mas porque por pura intuição não mistificada, torno a fantasiar uma vida levemente colorida, tingida além do cinza que anuvia minha cabeça e abre um abismo nesta ressaca imensa que agita meu mar. Eu postergo a chegada da morte enquanto sinto a vida pulsando a cada instante seguinte no meu lado esquerdo do peito. E o lesmo de reconhecer a si próprio é ao mesmo tempo o ato de unir todos os meus abismos, e a partir dele construir uma ponte que justifique o nome que me deram.

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leandro antony

leio e escrevo pra não deixar de aprender o faz-de-conta