sete horas da noite

leandro antony
10 min readFeb 8, 2024

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Jean Ledru

É de um gosto amaríneo que te decifro o novamente de novo ardendo sobre os botões gustativos da minha papila, e tudo o que se torna a repetir de minha boca, me assusta antes da sessão começar. Pouco devo aos momentos fugidios, o presente me solidifica sentado, e a sala está cheia, a tela em branco me fita como um portal que me convida a adentra-la, seria como atravessar o espelho? Tornar-me-ia portanto artista de cinema e passaria a me expressar atuando com um corpo e não com os dedos. O ciano do teus olhos que me fitariam do outro lado da tela seria de um lugar irretratável e cândido, e só reverberaria meus ecos ante à tua face,– lânguida, secreta, vítreo. E meu desejo seria apenas que me fite, livre de pretensões e altivez: não me decifras, porque não tenho interesse no teu mistério. São quase seis horas da noite e a sala começa a encher. O que faço de mim com a sessão que mudará minha vida? Sou apenas um corpo dotado de olhos, bocas e ouvidos. Eu tenho um nome, mas ainda estou dando um significado a ele. Nasci para ser espectador, pois do outro lado da tela branca do cinema eu seria o microfone, porque quero ouvir e repetir feito papagaio as frases prontas que algum roteirista escreveu como um raio de chuva torrencial. O que te escrevo veio num relâmpago.

Mas aqui, no cinema lotado e pulsando em júbilo de curiosidade desconhecida — preciso vestir a máscara da moral, e por mais que essa me sirva de escudo: não sou um anjo ou outro servo etéreo de deus, em minúsculo mesmo, pois o único senhor sou eu mesmo. Eu tenho carne e esqueleto, respiro e sinto raiva, e também seria capaz de expulsar-me do paraíso celestial. E não são só de dúvidas que preencho as lacunas dos meus desacertos, preciso me distrair com trivialidade porque a vida crua tem gosto de carne podre. É em noite de lua nova ao fitar com mais afinco a escuridão da noite sem lua é que noto a vazia profundidade do abismo da vida. E é mais secreto do que os meus pecados: não tem nome. Tem cor de ébano e crepita sem fogo, e eu carbonizo em segredo todo final de sessão.
As palavras liquidificantes escorrem da pele úmida de vida. Estou novamente à beira da existência, e consigo senti-la sem ser contrariado, como o sol ardendo minha pele num dia de calor escaldante. O segredo sacro é acreditar, e acreditar ultrapassa o crer, porque creio em deus mas acredito no universo, e nos prótons e elétrons. Sou um algo feito de poeira intergaláctica, e enquanto souber nadar, tornarei a banhar-me nu no líquido amniótico do mundo.

Afugentei-me no fundo da sala para que agora tu deixaste de existir, porque o que criei de ti foi um esboço de um ideal e não de uma verdade. E é somente pela verdade que posso ter domínio. Posso?
Retiro os brincos e os anéis para entrar no mar de palavras e arrebentação, são quase sete horas da noite, e te escrevo o mais cristalino da minha alma, alma essa que não se vai com o corpo. Estou sentado à espera do tempo. Quem decidiu marcar o tempo da morte? Se ainda tenho em pensamento a cor da tua pele, é porque estou planejando uma tela virgem para ti, e fabricar artesanalmente uma cor e um ângulo ideal para te fotografar eternamente. Pois te mirar de longe me parece mais fácil do que encontrar os significantes ideais, porque as palavras me escapam como quem bebe de um copo num só gole.
Estou sedento e te escrevo como ato de liberdade afobada, torno-me sempre mais cedo ou mais tarde apenas um fragmento de um outro. O que sou? Um outro. Um filme, uma sessão lotada.

Haveria de existir uma pintura despida de cores e paisagem, para que assim o som dos pássaros anunciando o alvorecer se faça sinestésico, e sentiríamos somente a cor em seu som mais puro e cristalino, e o silêncio da madrugada estrelada de verão seria apenas um desenho pintado por um acaso, por uma explosão. Ser livre é explosivo e rasga a pele como cobra agreste. Estou exposto a um nome, e quando me cumprimentam apenas sorrio frouxamente, porque o sorriso selváticamente inofensivo, e é sorrindo que te bato essas palavras sem fim. Isso tudo não tem um começo e jamais findará, é um grito no escuro da existência esfomeada. Cansei-me de acumular frases prontas sobre a vida: apenas deixo que me vença. Para que no findar do dia eu possa entender, ou aceitar que sou ultrapassado por ela. O que faço de mim é construção diária, e preciso de café e das cordas de Vivaldi para te fotografar um filme ideal, despido de roteiro ou alguma história previamente romântica. Entenda-me muito bem, apesar de parecer demasiado autocentrado, estou endereçando esta carta a ti, e a todos os ecos e abismos que formam meus anos de vida. O amor nos olhos dos atores também me dói, e é incisivamente prazeroso.

Meu prazer herético no amor está em gozar com o que me faz sofrer, e eu sofro por não existir, e assistir a não existência. Porque tudo tem um nome e um significado e emite um som. Tudo é um objeto, e minha fantasia não passa de um delírio pela procura deste mesmo objeto. Possuo um abismo quando me deito que me suga para um halo galáctico além do entendimento humano. Nunca pude ver a mim mesmo, e agora eu me vejo refletido na tela de um cinema. E brilha em fúcsia a vastidão de não se ter mais um nome e apenas ser. Estive à beira do presente e agora rezo para um passado que não escolhi: deram-me.
Não fiz concessões com às leis que aqui me regem, humano, demasiadamente humano. Minto e erro propositalmente, para que assim me faça puro e santo, e portanto, adentre os portais que levem aos céus e os noves círculos do inferno. Estive solto de mim, como um peixe que se desvia da corrente de cardumes, estou só e despido da loucura da palavra. Te bato em letras o que me fere por dentro, tudo isso é só uma síntese do cataclisma que precede a existência. É acre o sumo que levo ao estômago ao pronunciar o teu nome: amor. Há tanto tempo e tanta juventude a ser vivida, e eu permaneço aqui sentado à espera do próximo filme. Dançando em silêncio num ritmo desconhecido e descompassado uma valsa cortejada de horrores. E as máscaras caem dos rostos quando finalmente apagam as luzes.

É de um solo fértil que me planto em segredo, para que assim eu cresça pulsante e em silêncio profundo de uma árvore. Como as moléculas, as estrelas e as partículas subatômicas. Minha seara, árida e marfim te entrega o exílio do bio, da vida, meu sangue quente escorre dos dedos ao escrever teu endereço. Meu solo seco e arenoso afunda-te os pés e é por isso que me aterro em ti. Camuflo-me em superioridade, porque é assim que me protejo do irretratável inabalável dos teus olhos. Fotografo os momentos, não em retratos que conseguimos fitar eternamente os olhos, mas, em palavras que dilatam as pupilas, e o filme que te estou gravando é mudo e feito de legendas. De dor ou alegria, eu grito. E eu preciso gritar para ser ouvido. E no meio de tantos textos, frases, fonemas, signos. Tudo isso eu carrego com um peso, e tem o peso do meu silêncio. Tudo isso começa e termina, tudo isso é isso. Termina?

E tudo isso sou eu, é você, é tudo. Meu desejo é chegar ao futuro de braços erguidos gritando aleluia aos céus: aleluia por enfim ter desistido do que nunca me servira à cara. Agora estou livre de mim e solto no mundo. Respiro e tateio o universo absoluto ao meu redor: tudo isso me atravessa. Eu fiz de tudo. Passeei pelas veredas do amor em busca de sentido, na seara das letras à procura de alimento em forma de signo enquanto o tempo se desfazia como onda na arrebentação. Sou crivado pelos sentidos: cinza, fevereiros, lábios vermelhos: as horas. Menti e desmenti o meu próprio delírio, enfiei-me na cova do vácuo inexpressível de uma sala de cinema escura. Eu fiz de tudo: enganei-me a mim mesmo e aos outros, eu fiz de tudo para atravessar espelhos e gritar em silêncio aos ventos por um nome igual ao teu. Mas engoli a poesia com um copo d’água, e estou refeito. Porque fiz de tudo para revelar estágios desconhecidos, a fim de descobrir a desconformidade entre portas e janelas. Eu fiz de tudo, e é novamente noite e visto-me em hábito escarlate e adornos de ouro e prata. Estudei em colégio católico, conheci deus e o diabo muito cedo, minha vida é um eterno glória ao pai. E observo sereno o despertar de um sono que estive perdidamente apaixonado, mas não era paixão de ti, era a paixão de vida. Pois meu corpo voltou a se agitar desde a tua ausência, e compro flores fulvas e douradas para trazer um tom de calor para dentro de casa, porque é sabido que a vida é crua e só cintila no nascimento e em festas de carnaval. O filme que te gravei começa com um não. Estou sóbrio de sentidos e desejos, reconheço minha miudeza e recolho-me em castidade santa, pois como te escrevi, sei do deus e do diabo, do sol e da lua, das sessões de cinema sem fim e dos cigarros que nunca terminam. E eu fumo porque o cheiro da vida é intragável, mas não me poluo. Troto como cavalo nervoso em noite de chuva, e saio sem destino pelas ruas da mata que me cerca. Estou isolado do concreto, afastei-me da carniça do mundo: só assim fiquei livre de ti.

Agora estou só, eu e minha solidão cor de sangue espesso, e apesar de destro, às vezes gosto de pintar com o lado esquerdo do cérebro, e seguro os pincéis trepidamente, pois é como mirar fixamente os próprios olhos ante ao espelho infernal. Todos as cicatrizes que a máscara sobre o rosto me esconde os espinhos, é a menor exigência da esmagadora vida que me engole vivo. E a lama enfeitada que eu temo tocar com as pontas dos dedos em dia de chuva, seria apenas uma aversão ao mais puro do divino. Viver à margem há de ser minha seara, pois embora seja quase oito horas da noite, — o tempo, mesmo que em liberdade absoluta, ainda não é capaz de me desviar da culpa, e estou sempre em atraso com algo. com a vida? comigo.
Nasci por uma simples casualidade, disputei com outros trezentos espermatozoides para estar aqui te batendo o absurdo. Minha náusea tem cheiro de ralo aberto, e emana pelo ar um eflúvio de morte quase vida, afinal; basta estar vivo para morrer. E talvez por isso que toda noite eu tenha como hábito arrancar o coração, e me perfumo antes de adormecer, para que deus me receba perfumado em alfazema e folhas de figo. Minha pressão não tem perdão porque deixa de ser inquisitivo a partir do momento que deixo de existir. Sou um bandido e feiticeiro que se esconde sobre a sombra terrível da linguagem, e tudo o que eu digo e escuto é para usar contra quem me fala, ao meu desprezo ou ao meu favor. Meu desejo? Não ter um nome.

Se ainda mantenho-te vivo dentro do peito, é para me alimentar diretamente do plasma do mundo, e isso nunca será o suficiente. O que eu desejo não tem nome: é um corpo pulsando no mundo da quintaêssencia da palavra.
À noite, quando penso que em sonho findaria a finitude das horas, me ponho a sonhar com teu nome e a respirar sem que eu perceba. Viver é contragosto, e tomo do tempo em goles massivos, porque é amargo demais não tê-lo ao lado. Sim, a ilusão pode ser um objetivo ou uma distração pueril. Estive perdido de mim, e agora me dou conta do abismo que rasgava o peito. Sim, sou outra vez criança a vagar pelas ruas vazias à procura de um amigo. Procurando em corredores a entrada para a quarta dimensão, que de tão tênue e fugitiva se desfaz a cada procura. Buscando nos livros o mapa que indicaria o caminho, buscando na religião a prece mais serena, nos becos escuros do álcool a solidão do desejo enfadonho. Buscando em mim mesmo a razão para nunca mais pronunciar teu nome. Estou sempre indo, sou um eterno gerúndio, eu sei. E toda noite ao retornar da sessão de cinema; deito-me calmo e reversivelmente triste, porque o amanhã é sinônimo de futuro, e enquanto houver amanhã: há futuro. A esperança é a essência que me mantém vivo. E antes de retornar ao estado que ultrapassa a linguagem, passo a meditar sobre teu rosto em busca do teu traço mais verossímil, e eis que me dou como adormecido, a sonhar com um rosto perdido durante a madrugada que não é o teu, é de algum ator perdido visto nas telas. Não há amor sem ilusão, o mais forte sempre vence, o ideal é confortável e preenche em fantasia a falta do nascimento. A ilusão me alucina e indica o caminho do abismo, trépido e bêbado de ti, caminho em passos lentos para a morte.

Sim, preciso morrer para te esquecer. Preciso navalhar os pelos que um dia foram seus, apagar seus recados e suas cartas. Ainda preciso lavar-me do corpo que não é mais teu, esfregar com veemência as dobras da pele que acortina meus órgãos que ainda tremem na ideia de ti. Meu destino é ser o obnóxio do mundo. Meu orgulho é força motriz do meu ego, e sem ele o mundo me atravessaria como uma flecha ao meio-dia, e tão logo estanque em sangue, diria-te o improvável absurdo. Porque tenho sede, porque minha natureza é secreta e mutável. Escrever é o único método, falar é o meu único medo, e dirigir-me a ti é a minha única salvação. Endereço-te palavras grafadas em caixa alta, para que leias altivo e feroz — é como estou. Por fim, eu permaneço à estreita do que eu quereria que fosse, a dançar a balada dos arrasados, e a fazer de tudo um todo particular e secreto, é a ti que dirijo o impossível. É a ti que descrevo o horror que me rasga as vísceras.

O tempo se liquifaz como a criação divina. Eu não descanso. Não há pra mim um sétimo dia, preciso refazer todos os meus nomes: sou limitado por eles. Os astros e as conjunções já não me importam, meu desejo é correr junto as estrelas para te decifrar a velocidade da luz em que te bato o abstrato do meu pensamento. A língua é um abismo em fluxo escuro, e quem alcança o fundo do poço não encontra os significantes para definir o inefável. A tela branca do cinema se escurece quando no findar do filme finalmente entende que tudo é uma ilusão e que teu nome já não será o mesmo na próxima sessão.

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leandro antony

leio e escrevo pra não deixar de aprender o faz-de-conta